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“O diabo mora nos detalhes” por Ana Terra

28 jul

Artigo de Ana Terra publicado no site Music News em 28 de julho de 2010


As  alterações que estão sendo propostas na legislação trazem em sua redação  palavrinhas perigosas e aparentemente inocentes, mas abrem brechas que  podem prejudicar os direitos dos autores.


As alterações que estão sendo propostas na legislação trazem em sua redação palavrinhas perigosas e aparentemente inocentes, mas abrem brechas que podem prejudicar os direitos dos autores.

Em debate recente alguém perguntou ao maestro Leonardo Bruno, o que é um músico? E ele respondeu mais ou menos isso: é aquele para quem a música é a primeira e principal razão de viver.

O artista é alvo de amor e ódio da sociedade. Ao mesmo tempo em que endeusado por sua criação, é também invejado por sua liberdade. Prazer e trabalho raramente se conjugam. A maioria não gosta do que faz porque seu trabalho não tem significado, não lhe diz respeito, é alienado, não lhe pertence. E esperam o fim de semana para fazer finalmente o que gostam. Quando alguém me pergunta qual a minha profissão e respondo, compositora e escritora, algumas vezes ouço: mas no que você trabalha de verdade!?

No momento encontra-se em consulta pública a proposta de alteração da lei 9610/98 de Direitos Autorais. Não sou advogada, sou autora, e como tal minha cabeça é livre para pensar sem nenhuma amarra técnica. Tenho lido sobre a legislação a respeito, mas mesmo as correntes mais protetoras dos autores em algum momento os deixam órfãos. Precisava de uma chave para compreender o argumento filosófico que institui esse paradoxo que me intriga e para isso fui às origens.

A arte sempre existiu, mas antigamente não tinha o status de propriedade. Era tratada como uma prestação de serviço especial e seus criadores eram sustentados pela corte ou pela elite. A arte sempre foi fundamental para a existência. O que seria dos templos, palácios, cerimônias públicas, salões nobres? O que seria a vida sem ela? Por isso os criadores sempre foram sustentados.

Quando Gutenberg inventa a prensa, a história muda. Passa-se do manuscrito, sob a guarda de seus autores, à possibilidade de reprodução em grande quantidade a partir de um original. Surge então a questão de autoria e propriedade sobre os escritos. Diante disso, os monarcas instituem o regime de privilégios que, por meio de critérios políticos, garante exclusividade aos impressores e aos editores. A elite, como sempre, protege os meios de produção. O capital, e não o trabalho. Só na passagem da Idade Média para a Renascença e seus princípios de valorização do homem, é que os autores percebem sua importância inquestionável para o desenvolvimento da indústria editorial.

Coube à Inglaterra, em 1710, sancionar a primeira legislação escrita sobre a matéria com a célebre Lei da Rainha Ana, o Copyright Act, reconhecendo aos autores o direito exclusivo de reprodução sobre as obras por eles criadas. Mas essa noção só seria plenamente institucionalizada com as leis francesas de 1793, que garantiram expressamente o direito ao autor de exploração da obra pelo prazo previsto, após o qual cairiam no domínio comum “como compensação pelo fato de valer-se o criador, em sua elaboração, do acervo cultural da humanidade.”

Esse é o detalhe principal. Uma premissa falsa a partir da qual o paradoxo se instala e justifica as mudanças propostas para a lei brasileira em vigor. Por um acaso alguma coisa pode nascer do nada? Tudo nasce do acervo cultural da humanidade.

O Direito Autoral no Brasil é amplamente amparado na Constituição brasileira que, em 1988, não só consolidou mas ampliou esses direitos que, além dos anteriores direitos de reprodução e exclusividade de utilização, incluiu também a prerrogativa de exclusividade na publicação da obra. Isto significa que o autor tem a faculdade de oferecer ou não ao público o acesso à sua obra.

A proteção à propriedade intelectual é uma garantia fundamental, como o direito à vida e à inviolabilidade do domicílio. Muitas vezes, com a melhor das intenções, criam-se armadilhas conceituais. Os temidos detalhes. Por exemplo, a obra do espírito é definida equivocadamente como imaterial, como se pudesse existir alguma “obra” que não fosse resultado de uma ação ou trabalho. Mesmo uma música, que se propaga no ar, não precisa estar gravada ou registrada em uma partitura para receber proteção autoral, mas precisa ser exteriorizada. Para ser executada pela voz ou outro instrumento a idéia se materializa em primeira instância no suporte corpo humano. Não há idéia exteriorizada dissociada do suporte físico, portanto não há obra imaterial.

A obra de arte é o patrimônio moral e pecuniário de seu autor. No sistema capitalista brasileiro deve ser tratado como qualquer patrimônio, que é transmissível por herança sem prazo para extinção desse direito. Da mesma forma que a ciência de construir uma moradia é fruto do acervo cultural da humanidade, nem por isso ela passa ao domínio público. E também não é alvo de autorização não voluntária para, por exemplo, fins educacionais ou culturais.

O Direito Autoral é uma conquista do trabalhador intelectual e da civilização. Em 2002, na recente codificação dos  direitos civis, foi incluído nos Direitos da Personalidade, inserido nos chamados Direitos da Pessoa referentes à posição do ser humano na sociedade, e destina-se a individualizar a pessoa e conferir-lhe meios de se desenvolver intelectualmente. A obra de arte é considerada um prolongamento da personalidade de seu autor e com ele estabelece um vínculo permanente mesmo após sua morte.

O conflito entre o direito de propriedade sobre suas obras X o direito da sociedade ao conhecimento é um falso conflito causado por detalhes que, aparentemente, não são do mal, mas vão distorcendo perigosamente o espírito das leis.

No mundo nada é de graça. Mesmo nos eventos “gratuitos” alguém está pagando por isso. No caso da música, por exemplo. Em cerimônias religiosas, nas festas populares, nos estabelecimentos de ensino, nas academias de ginástica e, evidentemente, nos meios de comunicação, todos recebem por seu trabalho. O padre, o pastor, o produtor, os técnicos, o vendedor de cachorro quente, o porteiro, os professores. Os únicos acusados de “atrapalhar a festa” são os autores. Por quê? Seria por conta dos sentimentos de amor e ódio que despertam nos não criadores?

Podemos negociar preços, caso sejam inadequados, mas não princípios. Todo trabalhador, tem que ser receber pagamento por seu trabalho. Para todas as questões, inclusive as de ordem subjetiva, existem os parâmetros das leis. A lei de Direitos Autorais em vigor no Brasil, e na maioria dos países, guardados os equívocos de origem apontados, segue os princípios da Convenção de Berna. Esta garante os direitos morais e patrimoniais do autor e os dos titulares de direito conexo ao do autor, incluindo nessa categoria, os intérpretes e executantes.

As alterações que estão sendo propostas trazem em sua redação palavrinhas perigosas e aparentemente inocentes, mas abrem brechas para alterar o espírito da lei. E como reza a sabedoria popular: o diabo mora nos detalhes.

“Preocupante dirigismo cultural e político” por Marlos Nobre

28 jul
Artigo de Marlos Nobre publicado no dia 28 de julho de 2010 no site do jornal O Estado de São Paulo


Tenho acompanhado com crescente preocupação as diversas manifestações do Ministério da Cultura (MinC) a respeito das alterações que propõe para o direito autoral no Brasil.

O que me leva a escrever agora é um impulso irresistível de quem vive, diretamente, do fruto do seu trabalho como criador musical. Ou seja, sou um compositor brasileiro de música de concerto, essa faixa especialíssima de atividade que até agora não vi ser levada em consideração nem mencionada especificamente nessa proposta de revisão. Para começo de conversa, declaro-me contrário ao espírito e à forma, ao conteúdo e às intenções declaradas ou subjacentes e não devidamente claras no texto preparado pelos técnicos do MinC.

Parto inicialmente do fundo da questão, do seu cerne, isto é, o perigo que encerra tal reforma para quem vive ou deseja viver do fruto do seu trabalho como compositor, no Brasil. Ao partir do fundamento da questão, vejo dois pontos precisos:

Como brasileiro, como compositor, quero ter o direito de ver respeitados os meus direitos constitucionais e legais, partindo do seguinte princípio: “Ao autor pertence o direito exclusivo de utilizar e de autorizar a utilização de sua obra”;

Como artista, não posso suportar a imagem de um governo interferindo nos meus direitos como compositor, sob alegações não muito claras, como as apresentadas no texto proposto.

O mundo inteiro, é evidente, vem sofrendo alterações profundas nas relações e posições dos criadores (compositores musicais, romancistas, poetas) diante dos novos mecanismos em constante evolução na internet. Esse problema é de tal magnitude e de tal imprevisibilidade que ninguém – digo bem, ninguém – teve até hoje a ousadia de prever o desfecho da história. Tudo isso pode tomar um rumo totalmente imprevisível e desconhecido por todos nós.

Vivemos um momento delicado, em que o criador, ou seja, aquele que inventa o conteúdo, se vê envolvido numa teia complexa ainda não completamente clara nem explicada por ninguém. Isto é, em termos claros: ninguém em sã consciência sabe que “bicho vai dar”.

E agora vem a minha preocupação maior: esta atual proposta intervencionista, inspirada num daqueles conhecidos devaneios com características delirantes, também, de um possível e preocupante dirigismo cultural e político.

Se o MinC acredita que o artista e o criador não devem ter mais nenhum controle sobre as obras que produzem, como aparece implicitamente no texto da reforma proposta, então vamos em direção ao desconhecido e ao improvável. Vamos de mal a pior.

Afinal de contas, o que é que o MinC tem que ver com o fruto da minha criação musical? Será que os burocratas do MinC pararam um só instante para pensar no óbvio: que esse assunto é da alçada de quem produz a música neste país? Ou seja, que o artista, o criador, o músico-compositor não vive de brisa, de glória? Que o compositor alimenta, veste, sustenta sua família com o fruto do seu trabalho, ou seja, suas obras musicais?

Se o MinC quiser distribuir gratuitamente as obras musicais, sob o pretexto de “pertencerem ao povo”, então que o faça da maneira mais apropriada e recomendável: pague aos autores os direitos necessários das obras dos criadores do produto cultural (música, livro, pintura, fotografia, etc.) e as distribua de graça a universidades, centros culturais, onde o desejar. Mas que o artista receba, prioritariamente e antes de todos, pelo fruto de seu trabalho.

Mas cobrar do artista – como essa proposta de nova Lei de Direito Autoral do Ministério da Cultura pretende fazê-lo – para que o criador do produto cultural renuncie unilateralmente aos seus direitos, sob o pretexto de o MinC estar protegendo os direitos de produtores de conteúdos, sem mais a necessária autorização remunerada dos autores das obras, é um axioma tão absurdamente lesivo aos direitos constitucionais de qualquer cidadão que nem na antiga União Soviética os burocratas bolchevistas ousaram chegar tão longe. Lá, em pleno regime soviético-comunista, a figura do artista e a proteção à sua criação eram prioritários.

Deixem, por favor, srs. burocratas do MinC, que decidamos nós, os criadores, quem cuidará de nossa obra. O MinC critica a existência e a forma de ação de uma entidade como o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Mas esse é um problema – se é que existe um – exclusivamente nosso, dos criadores, para decidirmos. Que eu saiba, não houve da parte da massa de criadores brasileiros uma delegação dada ao MinC para resolver nossos problemas.

Exterminar o Ecad para criar em seu lugar, exatamente, o quê? Temos o direito de exigir essa explicação. Porque pertencemos a sociedades de direitos autorais – União Brasileira de Compositores (UBC) e outras -, e por meio delas, como sociedade civil, procuramos reclamar e pedir aperfeiçoamentos da máquina arrecadadora. Mas o que o governo tem que ver com isso? Vai criar em lugar do Ecad, que quer extinguir, mais uma estatal, com seu habitual aglomerado de empregados aliciados nos partidos políticos da vez? Não é isso o que queremos. Pelo menos falo por mim, em consonância com grande número de artistas que já se pronunciaram contra a tal reforma inusitada. Se o MinC quer fazer algo para o futuro (esperamos que ele exista…), então estude formas de romper os mecanismos que entorpecem e liquidam com a verdadeira produção cultural neste país.

E, por favor, deixem-nos criar em paz as nossas obras, e que sejam nosso patrimônio – aliás, o único verdadeiro que deixaremos para o futuro de nossos filhos, de nossos descendentes. Esse direito, sim, é constitucional, líquido e irremovível, e para que prevaleça devemos, todos, nos unir para evitar a catástrofe que se anuncia.

MAESTRO E COMPOSITOR, PRÊMIO TOMÁS LUIS DE VICTORIA 2005

“O Ecad é o inimigo?” por Tuninho Galante

22 jul

Artigo de Tuninho Galante publicado no jornal O Globo em 22 de julho de 2010

Quando se pensa em compositor, imediatamente lembramos de Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso. No entanto, nem sempre os compositores também são cantores ou músicos famosos. O compositor ganha o grosso de seu salário através dos direitos autorais que vêm da execução pública de suas obras em emissoras de rádio, televisão ou em shows ao vivo. Quem pesquisa, arrecada e distribui direitos autorais no Brasil é o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, formado pelas associações de gestão de direito autoral (uma espécie de cooperativa).

De cada R$ 100 recolhidos, seja em execução ao vivo seja em execução fonomecânica, o Ecad fica com R$ 17,50, as associações de gestão coletiva ficam com R$ 7,50, para seus custos operacionais que são altos. Os restantes R$ 75 são repassados para os titulares, sejam compositores, cantores, produtores, músicos, sendo que a maior parte vai para os compositores.

Nos últimos anos, mesmo com a grande inadimplência e batalhas judiciais que têm sido ganhas no STF, a arrecadação e a distribuição de direitos autorais aumentaram muito. Na página do Ecad na internet (www.ecad.org) estão publicados balanços de 2004 a 2009.

Progressivamente, redes de televisão, redes de cinema, de lojas, hospitais e até empresas de transporte público vêm regularizando sua situação com o Ecad, embora grandes redes de comunicação só venham pagando em juízo.

No texto da nova lei em consulta na página do MinC existem avanços como a proposta de penalização do jabá e não renovação de concessão pública para emissoras de rádio e televisão inadimplentes.

Importante também seria o impedimento dessas empresas receberem verbas de publicidade da administração pública  direta ou indireta municipal, estadual e federal. Qualquer produtor que queira participar de edital ou concorrência pública precisa provar que está em dia com suas obrigações fiscais. Seria justa a reciprocidade.

O sistema de arrecadação e distribuição pode melhorar? A Lei do Direito Autoral pode melhorar? Ecad e associações precisam ser mais transparentes? Podem e devem. No entanto, o MinC erra ao tentar desmoralizar o Ecad como um todo.

Recentemente, o Congresso aprovou um código florestal que é um grande retrocesso. Vamos fazer o mesmo no campo musical? Praticamente não existe nenhuma atividade sem a utilização de música.

Fiscalizar e zelar pelo cumprimento da lei é obrigação do governo. A sociedade, através do governo, querer atuar como moderadora no processo do direito autoral pode ser bom. No entanto, a tentativa de desmoralizar o Ecad, justamente quando a arrecadação e a distribuição de direitos autorais vêm aumentando tanto, é estranha e inaceitável.

A quem interessa isso?